Mais sobre EDP de primeira ordem

Alguém pode objetar: ah, essa história de características só funciona para equações simples como a do surfista. Vamos então considerar um exemplo mais “complicado”, para que fique claro que o método é bastante geral, e sempre se reduz a resolver explicitamente algumas EDOs. (As quais, por certo, nem sempre conseguimos resolver, mas podem nos dar informações importantes sobre o comportamento qualitativo das soluções da EDP original.)

Vamos começar pela equação

\displaystyle  \partial_t v + v\partial_x v + v^2=0,

que é certamente mais complicada que a de Hopf. Vamos procurar soluções dessa equação com condição inicial v(0,x) = e^{x}. Já sabemos que essa equação se reduz ao seguinte sistema de EDO (equação das características)

\displaystyle \dot t = 1, \dot x = v, \dot v =-v^2.

tDevemos resolver esse sistema de EDO explicitamente. Notem que a primeira e a última dessas equações têm solução fácil

\displaystyle t(\tau,\sigma) = \tau +  t_0(\sigma).
\displaystyle v(\tau,\sigma) = \frac{v_0(\sigma)}{1+v_0(\sigma)\tau}.

A segunda equação fica

\displaystyle \dot x = \frac{v_0(\sigma)}{1+v_0(\sigma)\tau}

cuja solução geral é

\displaystyle x(\tau,\sigma) =  \log\left(1+v_0(\sigma)\tau \right)  +x_0(\sigma).

Agora temos que escolher as constantes de integração t_0(\sigma),x_0(\sigma),v_0(\sigma) de maneira a garantirmos a condição inicial v(0,x) = e^{x}. Vamos ecolher t_0=0 x_0=\sigma   e v_0 =e^{\sigma} . Com isso, temos a equação paramétrica da solução que procuramos

\displaystyle  t(\tau,\sigma) = \tau ,
\displaystyle  x(\tau,\sigma) = \log\left(1+e^{\sigma} \tau \right)  + \sigma ,
\displaystyle v(\tau,\sigma) = \frac{1} {e^{-\sigma}+ \tau}.

Porém, não queremos a solução em forma paramétrica, queremos uma expressão relacionando as variáveis originais do problema, t,x,v . Precisamos, portanto, “resolver” as expressões paramétricas para \tau,\sigma. A primeira equação nos permite eliminar \tau. A segunda equação fica

\displaystyle e^x = e^\sigma + te^{2\sigma},

cuja solução para \displaystyle  e^\sigma    é

\displaystyle e^\sigma = \frac{-1\pm \sqrt{1 +4te^{x}}}{2t}.

O sinal compatível com as condições iniciais é o “+”.  Substituindo-se na expressão de v ficamos finalmente com

\displaystyle v(t,x) = \frac{ \sqrt{1 +4te^{x}} -1}{  ( 1 +  \sqrt{1 +4te^{x}})t },

Quem duvida que essa é uma solução, pode verificar na mão que ela satisfaz a equação e a condição inicial. É instrutivo também verificar no Mathematica, ou em qualquer outro pacote equivalente. Os comandos:

f := (Sqrt[1 + 4 t*Exp[x]] – 1)/(t*(Sqrt[1 + 4 t*Exp[x]] + 1))

Simplify[D[f, t] + f*D[f, x] + f^2]

no Mathematica darão como resultado

comprovando que, de fato, temos uma solução.

É impostante frisar que só pudemos escrever a solução em forma fechada porque a condição inicial nos permitiu resolver a equação de x(\tau,\sigma) para  \sigma. Se a condição inicial fosse, por exemplo, v(0,x)=e^{-x^2}, não seria possível escrever a solução em termos das variáveis iniciais. Porém, teríamos a solução em forma paramétrica

\displaystyle  x(t,\sigma) = \log\left(1+e^{-\sigma^2} t \right)  + \sigma ,
\displaystyle v(t,\sigma) = \frac{1} {e^{\sigma^2}+ t},

o que é suficiente para inferirmos o comportamento qualitativo das soluções.

Finalmente, vamos considerar um caso em que a EDP não é linear nas derivadas. Por exemplo, a equação

\displaystyle ( \partial_x v)^2 + (\partial_y v)^2 = v .

A estratégia de Lagrange-Charpit consiste em considerar essa equação como intersecção de superfícies em um espaço de dimensão mais alta. Introduzindo-se as novas variáveis p=\partial_x v e q=\partial_y v, nossa equação é equivalente às curvas de nível da função   \phi:\mathbb{R}^5 \to \mathbb{R}

\displaystyle \phi(x,y,v,p,q) = p^2 + q^2 - v = 0 .

A igualdade expressa por essa equação é válida para todos x, y do domínio de interesse.  Portanto, temos duas novas condições

\displaystyle \phi_1(x,y,v,p,q) = \partial_x\phi = 2p\partial_xp + 2q\partial_xq -p = 0 .
\displaystyle \phi_2(x,y,v,p,q) = \partial_y\phi = 2p\partial_yp + 2q\partial_yq -q = 0 .

A solução que procuramos é a intersecção   \phi \cap \phi_1\cap \phi_2 dessas três hiper-superfícies de   \mathbb{R}, dando origem a uma subvariedade de dimensão 2, como já esperamos para as soluções da nossa equação. Levando-se em conta que \partial_yp =\partial_xq, podemos rescrever   \phi_1  \phi_2 como

\displaystyle \phi_1(x,y,v,p,q) =  2p\partial_xp + 2q\partial_yp -p = 0 .
\displaystyle \phi_2(x,y,v,p,q) =  2p\partial_xq+ 2q\partial_yq -q = 0 .

Bem, estas duas equações são do tipo que tratamos anteriormente, linear nas derivadas. Podemos resolvê-las com o método das características. Teremos

\displaystyle \dot x = 2p,
\displaystyle \dot y = 2q,
\displaystyle \dot p = p,
\displaystyle \dot q = q,
\displaystyle v = p^2 + q^2,

As soluções são

\displaystyle p = p_0e^{\tau},
\displaystyle q = q_0e^{\tau},
\displaystyle x = 2p_0(e^{\tau}-1)+x_0,
\displaystyle y = 2q_0(e^{\tau}-1)+y_0,

Para simplificar, vamos tomar as condições iniciais tais que x(0) = 2p_0 e y(0) = 2q_0. Nesse caso, temos p =\frac{x}{2} e q =\frac{y}{2} e a solução final será

\displaystyle v(x,y) = \frac{x^2 + y^2}{4}.

Sobre a equação de Hopf

Atendendo a pedidos, segue abaixo uma análise detalhada do problema da equação de Hopf (do surfista!) da P2 da turma especial (ou da P2 do curso de 2017).

A equação é \displaystyle \partial_t v + v\partial_xv = 0, e a ideia é resolvê-la explorando a teoria (de Caratheodory) das curvas características.  Bem, a solução dessa EDP é a função v(t,x) , que vamos supor por ora suave. A ideia é considerar essa função como a  superfície de nível  \phi(t,x,y) = 0 da função \phi: \mathbb{R}^3 \to \mathbb{R} dada por \phi(t,x,y) = v(t,x) - y. É claro que, por construção, a superfície de nível  \phi(t,x,y) = 0 corresponde ao gráfico da função v(t,x) que procuramos.

Notem que a equação de Hopf pode ser escrita como

\displaystyle \underbrace{\left( \hat\imath + v\hat \jmath \right)}_{\vec V}\cdot \nabla\phi = 0,

Sabemos que o campo gradiente \nabla \phi é normal as superfícies de nível da função \phi: \mathbb{R}^3 \to \mathbb{R}. Essa relação nos diz então que o vetor \vec V = \hat\imath + v\hat \jmath deve ser tangente à superfície de nível \phi(t,x,y) = 0.

Considerem agora a curva \Gamma_\tau:\mathbb{R}\to \mathbb{R}^3 dada por (t(\tau),x(\tau),y(\tau)) , com \tau \in \mathbb{R} . Sabemos que \Gamma_\tau está contida na superfície de nível \phi(t,x,y)=0 se seu vetor tangente for perpendicular a  \nabla \phi. Ora, já conhecemos um vetor perpendicular a \nabla \phi, o vetor \vec V. Assim, a curva \Gamma_\tau com vetor tangente

\dot t\hat\imath + \dot x\hat\jmath + \dot y\hat k = \vec V = \hat\imath + v\hat \jmath

está, por construção, contida na superfície de nível que procuramos. Essa curva pode ser facilmente integrada, e teremos

\displaystyle \Gamma_\tau: \quad (t = \tau +t_0,x = v\tau + x_0,y = v = v_0),

sendo que já fizemos a substituição y = v(t,x) que vem da definição da superfície de nível. As constantes t_0,x_0, v_0 são constantes de integração e correspondem ao ponto inicial que escolhemos para definir a curva \displaystyle \Gamma_\tau.

Estamos a um passo de resolvermos a equação de Hopf. Com o que temos agora, dada a condição inicial v(t_0,x_0)=v_0, sabemos calcular o valor da solução  v(t,x) ao longo da curva \displaystyle \Gamma_\tau. Porém, a solução é uma superfície, não uma curva. É claro que a solução geral requer que escolhamos as condições iniciais (t_0,x_0, v_0) ao longo de uma outra curva tangente a nossa superfície. Quer dizer, devemos ter uma outra curva  (t_0(\sigma),x_0(\sigma), v_0(\sigma)), com vetor tangente também ortogonal a \nabla \phi, mas linearmente independente de \vec V. Uma vez especificada essa condição inicial (t_0(\sigma),x_0(\sigma), v_0(\sigma)), com \sigma\in\mathbb{R}, teremos finalmente a solução v(t,x) em forma paramétrica. No nosso caso, a solução é

\displaystyle \Gamma_{\tau,\sigma}:  (t(\tau,\sigma) = \tau +t_0(\sigma),x(\tau,\sigma) = v\tau + x_0(\sigma), v(\tau,\sigma) = v_0(\sigma)),

Vamos agora especificar a solução para a condição inicial proposta no problema, v(0,x)=g(x) . Devemos escolher as funções (t_0(\sigma),x_0(\sigma), v_0(\sigma)) de maneira adequada. Neste caso, basta escolhê-las como (t_0(\sigma) = 0,x_0(\sigma)=\sigma, v_0(\sigma) = g(\sigma)). Com isto, a representação paramétrica de v(t,x) fica

\displaystyle \Gamma_{\tau,\sigma}:  (t(\tau,\sigma) = \tau ,x(\tau,\sigma) = v\tau + \sigma , v(\tau,\sigma) =g(\sigma)),

Para obtermos a forma não paramétrica, basta resolver essas equações para \tau,\sigma , e neste caso a solução é muito simples, temos \tau = t e \sigma = x -vt, e a solução final é, na forma implícita,

v = g(x-vt).

Para ver porque a equação de Hopf merece o apelido de equação do surfista, veja a solução no site…

Agradecimentos especiais: Mr. M, the surfer, pela autorização de uso da imagem, Mr. R pelos erros apontados, ….